sábado, 22 de maio de 2010

Magro - Crônica

MAGRO


Estive pensando em quantas pessoas existem que não exercem funções que lhe convém. Tentei olhar em seus olhos, mas ela resistiu e resolveu fechar um dos olhos. Parecia não querer que eu visse cinquenta por cento de sua alma. Talvez vendo os cinquenta por cento restantes de sua alma, eu veria que ela não exerce a função que lhe convém. Assim como eu. Entrei em sala de aula, observei os alunos e tive medo. Muito medo. Não deles, mas do que eu poderia fazer com eles e eles comigo. Medo da situação que se tornou comum, a grande performance que somos obrigados a fazer. Professor é performático, alunos tanto quanto. Seguimos estereótipos do aluno mal educado e rebelde, do professor sem paciência e ultrapassado que não consegue coordenar seu conhecimento antiquado com a moderna atitude do aluno, o rebelde. Estranho! Estereótipos que compramos. Por isso pensei nas funções que não nos convém. Mas, existem aqueles! E este é o rapaz pra quem dedico este texto, a quem chamo de personal assaltante. O papel de assaltante pessoal lhe convém como nenhuma outra função a outro alguém.
Sai pela rua próxima a uma praça de uma igreja menor que a central, eu tinha saído de um dia inteiro de sala de aula e a rua era um bom percurso a lugar algum até que eu retornasse a meu eixo. Sim, educação pesa! Já havia chegado a hora do império da lua cerca de umas duas horas e eu olhando as pessoas reunidas na praça, esperando algo na igreja. Culto, missa, reunião, gente acumulada em torno de pouca coisa. Sentei, então, num banco já na esquina da praça, onde os carros passavam mais próximos a mim que uma voz de qualquer um. Deixei a mochila ao lado, acendi um cigarro e deixei Cronos narrar o instante. E num é que muitas pessoas ali pareciam ter menos propósito do que eu... acabou o cigarro e a noite perdeu o sentido. Lembro de ver um rapaz sentado em sua moto desligada, ostentando prazer pra ninguém, esperando alguém sair da igreja. Deduzi, era sua namorada. E ela saiu, bonita porém deselegante. Rancoroso por eu ter rompido conversa com ele, Cronos se encarregou de me mandar companhia. Ele estava mal vestido, parecia sujo, feio, e um volume na cintura deixava no ar a silhueta de uma arma. Educadamente, o rapaz estendeu a mão e me cumprimentou.

_ E ae! Tem o que pra bandido aí?
_ Como? – eu juro que não havia entendido.
_ Me arruma cinco reais aí.

Eu entreguei-lhe cinco reais que estavam em meu bolso. Não era coincidência. Cronos sabia que eu tinha reservado esse dinheiro no bolso pra pagar minha passagem de ônibus pra casa.

_ Deixa eu te perguntar uma coisa, você mora onde?
_ Próximo à universidade – menti.
_ Você é filho de policia? É dedo duro?
_ Não. Claro que não.
_ Tá falando a verdade, né?
_ To, claro.
_ Tá fazendo o que aqui?
_ Parei pra fumar.
_ Fumar o que?
_ Cigarro – tirei do bolso a carteira de cigarros e o ofereci, ele segurou a carteira e eu lhe entreguei o isqueiro também.
_ Fala a verdade, você tem mais dinheiro aí, né?
_ Que nada. Não tenho não – menti de novo.
_ Tem o que aí na mochila?
_ Nada – abri e mostrei a ele. Havia diários de classe das minhas turmas.
_ Você é professor?
_ Sou sim.
_ Po, você não é mesmo filho de polícia nem dedo duro, né? – ele desistiu de me pedir dinheiro e a senha foi dizer que sou professor. Não se tira leite de pedra!
_ Não, to falando.
_ Deixe eu ver esse celular aí?

Fui tomado por um insight: isso era um assalto. Mas ele era tão educado pra um assaltante. Eu tinha uma dívida com Cronos e ele tava me cobrando, compreendo mas não acho justo. Se era um assalto, era atípico. E eu seguiria esse padrão. Entreguei o celular a ele, mas ele não pegou.

_ Seguinte – disse desviando o olhar – quer ficar com o chip?
_ Quero. – abri o aparelho sem desligá-lo – Posso apagar as fotos e as mensagens? É muito pessoal.
_ Não, pode deixar que eu apago pra você.
_ Tem certeza? Porque é muito pessoal.
_ Po, num sou moleque não. Eu apago pra você.
_ Tá certo. – entreguei-lhe o celular. Ele me devolveu a carteira de cigarro, mas ficou com um e o isqueiro. Levantou, me deu a mão novamente. – Seguinte, vou por ali. Não venha atrás de mim, não me dedura, ok. Boa noite! Valeu aí. – E sumiu seguindo a rua atrás de mim.

Ele foi educado, simpático, porém feio e mal arrumado. Eu poderia dar-lhe um abraço por gratidão. Afinal, ele me deixou tão calmo que eu não percebi se tratar de um assalto. Gostei dele. Ele exercia uma função que lhe cabia. Enfim, alguém na sociedade que cumpria bem uma função. Em tantos mundos incabíveis, realidades desfocadas, alguém se sentia confortável no que fazia.
Nos dias seguintes, eu tive medo de andar pelas ruas. Cronos poderia me cobrar mais coisas, ele era rancoroso. Mas eu me permiti continuar a vida como se eu não tivesse uma dívida. E Senhor do Tempo me colocou frente a meu assaltante mais algumas vezes. Certa noite saí com minha prima e um humano qualquer de uma boate e chamamos um taxi para ir a um bar. Atravessamos a rua para esperá-lo. E quem veio foi meu assaltante. Caminhando como quem passei à luz das três horas da manhã, num passeio despreocupado. Levava seus braços cruzados para trás e vinha em nossa direção. Eu disse para nós sairmos de perto, e ele disse “Calma, amigo, ta tranquilo”. Entramos no primeiro taxi que passava e nos livramos de pagar a dívida. Mas ela foi cobrada novamente, em parcela menor.
Em dez minutos já seria nove horas. O fiscal da emut me informou que meu ônibus chegaria nove e dez da noite. Tempo suficiente para eu ir com minha amiga ao ponto de ônibus dela e retornar. Não daria cinco minutos. Foi o que fiz. No caminho, falava de meu assaltante e do receio de vê-lo novamente, já que isso tinha acontecido algumas vezes, mas sempre há distância. Eu a deixei e voltei ao meu ponto. Ponto já vazio e nada do ônibus. Sentei só no banco do ponto vazio e meu assaltante surgiu de repente e sentou-se novamente ao meu lado esquerdo – um padrão que ele segue.

_ E ae, boa noite! – já éramos íntimos – Amigo, não vou te assaltar nem pegar nada seu. Eu to aqui pedindo uns dois reais, se você puder me ajudar. É que eu to devendo trinta reais à boca. Se você puder me ajudar com dois reais.

Meu novo celular estava na minha mão, diante dos olhos dele e de todo mundo que pudesse nos ver. Olhei rápido pra rua e pensei “é pra lá vou correr se ele pedir meu celular”, não que eu me importasse com o prejuízo do celular que custou setecentos reais que eu havia pago à vista, mas porque isso seria pagar a Cronos além da minha dívida. Levantei, sem dizer uma palavra, olhei em seus olhos como quem joga sobre ele uma mistura de raiva com carinho, tirei duas moedas de dois reais do bolso – e, mais uma vez, era exatamente o que eu tinha no bolso, o mesmo valor que ele pediu, de novo! – e entreguei-lhe as moedas. Sentei de novo.

_ Obrigado! – ele levantou e andou cerca de quatro passos e virou-se para mim, novamente – Você não vai ficar a pé, né?
_ Não, tudo bem!
_ Ok. – e saiu passando pelas pessoas, como quem não as via.

Mais um encontro com meu assaltante pessoal. Ele era educado, e agora se mostrou preocupado com o fato de eu ficar a pé ou não. O fato é que ele cumpre sua função social de forma muito confortável. Fiquei com pena dele. Pensei em vê-lo estampado na capa do jornal, morto, assassinado por alguém da boca. Decidi que eu iria denunciá-lo à polícia. Algumas horas depois, eu estava na varanda da minha casa olhando o céu e as plantas que sobem as paredes do nosso quintal. Lembrei dele quando eu pensava algumas questões de filosofia. Platão... Wittgenstein... Heidegger... Ricoeur, Kant, Descartes... meu assaltante, provavelmente, nunca ouviu falar nesses caras. Não queria denunciá-lo. Eu queria que ele conseguisse calcular logaritmo e compreendesse a estética transcendental do Kant. Que ele soubesse que Munch pintou o quadro O Grito e Anita Malfatti fez a primeira exposição de arte moderna no Brasil no início do século vinte. Tive pena dele. Eu o imaginei entre meus alunos do estado ou entre meus colegas de faculdade, quem sabe cursando um mestrado na UENF ou na UERJ, UFRJ, UNB...
Para encerrar o medo do futuro alheio, recoloco uma frase minha mesmo, dita em outros papéis: era como querer brincar de ser deificado.

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