sábado, 1 de maio de 2010

S. Álvaro

Era mesmo uma figura curiosa. Seu olhar trazia histórias. A sala ainda era fria, o mesmo frio pelo desconhecido. Então era ele o foco das atenções. Entrou na sala um tanto receoso, conseguiu ver a todos que o esperavam... um homem, o qual só se via sua barba soberba, duas pessoas de pé que não pareciam ser ninguém importante, mas só marcavam presença. O velho sentou, enfim, para descortinar suas muitas vivências aos homens de pouca fé ali presentes. Deixou escapar um olhar à porta se fechando atrás dele, respirou um dos poucos ares que ainda podia e deixou-se levar pelas perguntas do homem de barba soberba. Teve tempo de se apresentar aos dois de pé que se achavam uma presença qualquer... mas não eram, não para ele. Por um instante, deixou que entrassem nele, buscando em suas vivências palavras que parecessem coerentes, lógicas, com um nexo dentro dos padrões. Mas este que buscam jamais seria o Álvaro. Não o Álvaro que havia criado tudo o que existe após Deus ter feito o mundo vazio. Não seria o Álvaro nascido no ano um, filho de índios largados no vazio criado pelo Deus deixando a eles a incumbência de preencher todo o resto como bem achassem necessário... e fez-se tudo o que existe nesse mundão do Senhor.

_ E como o senhor está, seu Álvaro?
_ Bem, graças a Deus!

Levantou, então, seu tom de vitória conseguido por ter finalmente consertado o último hospital de sua história. O bom andarilho viajante de muitas cidades por interior de hospitais consertando o que havia para ser consertado. Num gesto sutil, deixou fugir uma esperança escondida no fundo de um bolso qualquer da calça... em pouco tempo o homem da barba soberba abriria os portões e o deixaria ir... havia mais lugares a serem consertados, mais ruas a serem descobertas. Suas vivências foram guardadas como quem guarda um tesouro que jamais pode ser descoberto. E o homem tentou tirar de seu Álvaro histórias que parecessem coerentes. Mas não eram suas reais histórias... seu Álvaro queria apenas retornar para seu castelo brilhando ouro que ficava no fundo do mar, onde somente ele pode entrar e desfrutar de uma existência própria, sua, e apenas sua. A aparência frágil deixava enganar os olhos mais desatentos. Repetia com vigor que abrindo os portões do hospital ele saberia chegar a sua casa... queria notícias de seu irmão gêmeo, de seu Brasil querido que ficava dentro da Babilônia, queria poder contar a quem quisesse ouvir como criou tudo o que existe, como sua mãe criou água cuspindo numa chaleira, como Deus havia criado o mundo defecando dentro de uma caixa de ouro feita por seus pais... e escondia sua amada dor onde nenhum homem encontraria, escondia para que jamais pudessem rir dele como qualquer um outro homem que se achasse normal, saudável... e era ele quem consertava os hospitais, não os homens saudáveis. Não se sabe por que ele deixou aquele homem naquela sala fria ir mais adiante do que ele queria deixar. Não se sabe por que, mas ele deixou que o homem da barba soberba fosse adiante em suas vivências... contou-lhe segredos e momentos delicados.

Seu Álvaro usava uma jaqueta azul escuro sobre aquele corpo pequeno, frágil, notável em sua originalidade. Não era qualquer um, era o homem íntimo de Deus, a quem Ele havia dado o poder de criar, de consertar, de falar das coisas divinas para quem as considerassem delírios... E lá se foi seu Álvaro... levantou triste da cadeira após a investigação com aquelas pessoas estranhas, que não haviam respeitado seus cabelos branco-encardidos que muito haviam feito. Saiu pela porta sem poder sentir que voltaria a seu castelo no fundo do mar, pelo menos não nos próximos dias, pelo menos não enquanto dissesse a verdade a quem a considera delírio, pelo menos não enquanto dissesse suas grandes vivências e verdades a homens de pouca fé. Ele não sabia como contar sua humilde vida, comum a todos às outras, para poder voltar para casa... sabia que suas vivências eram como as de todo mundo, mas ele não mais sabia como contá-las do mesmo modo que todos a contam... ele precisava do “castelo” para falar de sua casa velha, pobre, e do “fundo do mar” para falar de sua rua... Mas os homens de sabedoria jamais poderiam compreender o que ele dizia. Saiu da sala com o peso da frustração de não conseguir traduzir em palavras certas o que sentia, quem era, de onde veio... e deixava os homens de sabedoria e pouca fé sentirem nele um pobre homem doente. Ele perdia, assim, as chances de contar as ricas histórias de sua vida... ele perdia ouvidos atentos que poderiam querer conhecer o que somente ele pode ter vivenciado. E lá se foi seu Álvaro, arrastando as sandálias, puxando o mundo consigo, trazendo as memórias de muitas vidas e muitas gentes, e lá se foi... não se sabe para onde, não se sabe para que rua, para que hospital, para que castelo além de um quarto da enfermaria manicomial.

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