sábado, 1 de maio de 2010

queremos ser vistos...

Clarice hoje não parecia nada consigo mesma. Era o cabelo solto sobre os ombros, o olhar mal direcionado, a calma que irrita... A chaleira no fogo fervia uma água, nunca no ponto exato. Falava de exatidão consigo mesma. Era o fim do dia. A água fervia sem propósito. O olhar mal direcionado de Clarice mal atingia o borbulhar dentro da chaleira. Uma mulher em nova idade. As bolhas da água emergiam. Trazendo a força de algo por baixo. Emergem. Emergem. Emergir... Ela pensava no velório de si mesma.

Pensava em quando entrou na cozinha cambaleando pistas das próximas ações. Clarice mal sabia o que fazer, o que rompia incômodos por seu estômago. Pensava em quando tirou a chaleira do armário, sem saber o que trazia em suas mãos. Acendeu o fogo e enfim, reconheceu o fogo. Reconheceu o que doravante a faria não ser mais Clarice e a faria sê-la novamente. Incertezas ocupavam todo o espaço. Trazia a chaleira e mal sabia o que trazia em mãos. Mas acendeu o fogo e restava um instinto de humano. Colocou, então, a água para ferver. Havia tempo que não conseguia fazer um chá. Pensava no fogo aceso, na água... No fogo que, aceso, fazia as bolhas emergirem na água... Pensava no velório de si mesma. Então era o fogo que, aceso, fazia a água borbulhar... E emergir o que estava em baixo. Então era o fogo que fazia emergir... Desvelar. Agora pensava no desvelório de si mesma.

Jogou a chaleira borbulhando dentro da pia. Desligou o fogo com a voracidade que mal cabia em seus gestos. Poderia gritar e esvaziar-se em segundos. Mas preferiu esperar esculpir em torno de seu corpo o que mais se parecia com Clarice. Vestiu-se como Clarice costumava vestir-se. Arrumou-se, pintou-se e enfim, foi ao encontro do fogo que faria emergir as bolhas dentro de si. Deveria correr, o término do dia e o avançar da noite poderia dificultar as coisas... Não encontraria lojas abertas, nem vendedores atrás de balcões. Ainda assim preferiu parar no ponto e esperar um ônibus. Pagaria a passagem com a última moeda na bolsa. Isso não importava. Nem ela mesma importava mais. Queria apenas o seu emergir.

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