domingo, 10 de outubro de 2010

Nem tudo vira crônica

Se o diabo mora nos detalhes, Deus não perde tempo com o conteúdo. O que importa é a forma. Ela que define a maleabilidade do conteúdo. E nem todo conteúdo é suficiente para se enquadrar na forma. Seja lá que forma for! Não importa! Importa a suavidade denunciando uma dor esquecida num canto dos olhos. Importa o tom da voz variando um ar seco, quase sufocante, para esconder a valiosa arquitetura interna... a estima de si, como diria Ricoeur. Nem mesmo sentir a temperatura daquela pele em meio a escuridão da madrugada... momentos que não passam, mas ficam retidos na memória como boa lembrança de um dia "primordial" (Tótem Cavaquinho que me perdoe, mas eu usei seu termo. Perdoe-me!). O dia "primordial" que começa num bar de esquina e um pouco de vinho, coroando a noite, quase despercebida. Até o chegar da vigília numa manhã fria de domingo. Lembro de sempre deitar para dormir com medo de que o amanhecer nunca chegue. Mas este amanhecer, eu desejaria que nunca chegasse e rezava um santo de um panteão qualquer que perpetuasse aquela madrugada. Mas tudo finda.

Tudo finda! Por que "pantá rei"? Não faço ideia. É melhor que não faça. Como diria Drummond

"Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universal
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberana."

Que se perpetue!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Lavat




... os olhos cerrados mal podiam ver o espetáculo que se formava. A voz da moralidade clamava o grande show. O sangue derramado protagonizaria das mais belas e eficientes cenas coercitivas dos seqüenciais dias.
Ele deixou-se levar pelos gritos pavorosos da multidão, que pediam uma justiça que não se sabia justa. Pagaria, em alguns instantes, pelo crime tido como dos mais vis de toda história da milenar cidade.
E fora dito, em Teerã, Lavat!

21/02/2009

sábado, 7 de agosto de 2010

Stregoneria

STREGONERIA

Se eles tivessem lembrado que haveria cerimônia, teriam chegado mais cedo. Os monges da Ordem de São Bento entoavam o canto Cum Audisset Populus, muito conhecido dos dois. Os dois que transitavam passivamente por igrejas e templos, sem ao menos se importar com os dogmas. Malditos dogmas! O canto dos monges também era o canto dos dois. Ela, herdeira dos mais sutis dons despertos há séculos em sua família de origem italiana. Ele, conhecedor profundo das artes divinatórias. “Streghe”, disse ela. Mas se sentaram ali mesmo, no limiar entre a calçada e o trânsito de carros. Pouco trânsito.
O domingo coroava a entrada do Rei na cidade, coberto de ramos e aclamado pelo povo. Rei que fora expulso por esse mesmo povo. Uma estranha celebração, essa lembrança do Rei. Mas perdura por séculos. “E vimos isso, vimos essa história, na memória do mundo. Somos o mundo e sua memória” – ele não guardava para si seus olhos lacrimejando. Estavam em frente a Igreja e assistiam, distantes, a celebração do Domingo de Ramos. De uma das janelas, podiam ver os frades e ouvir seus cantos. Os dois fizeram silêncio. E silenciaram-se os Céus. Porque, “o que é embaixo é como o que é em cima” e “o que ligardes na terra, será ligado nos Céus”. E eles ligaram na terra para que fosse ligado nos Céus. Ele segurou sua mão e olhou em seus olhos. Os monges haviam silenciado agora. O mundo queria ouvir o perturbador silêncio do coração. Ela abriu sua alma e permitiu-se ao instante. Ela sabia que o instante definiria suas vidas. O instante sempre definia a vida. E mesmo os frades sabiam disso. “Principalmente eles” – pensaram. Algum tempo se passou até que o silêncio pudesse ser calado e o som viesse incomodar. Ele, ainda com uma das mãos segurando a dela, abriu sua bolsa e sorteou uma pedra. Colocou a pedra diante de ambos. Agora, os monges entoavam o canto gregoriano Ante Sex Dies. Os dois olharam a pedra. Era a runa em branco, Odin, o desconhecido. Entenderam o Instante a serviço do Destino. O Nada que se dispõe à construção da vida. O Nada que permite ao homem traçar seus passos, mas que não revela o chão por onde ele vai andar.
Findada a cerimônia, vendo os que saiam da Igreja, ela levantou-se e desafiou o mundo “consumatum est!”.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

o homem, a bengala.

Mais um sem pé nem cabeça, começo nem fim. Porém, esboço!

o homem e a bengala
ou
o homem, a bengala


Qualquer momento heideggeriano precisa de uma válvula de escape. O desejo latente de não ter o saber circunstancial corrói os mais duros corações que mal sabem o que o instante seguinte lhes reserva. Não adianta antecipar o que se deve saber. Ele é circunstancial. Não adianta notar-se como único ser, manifestação singular, que transita por aí, sem se notar nitidamente preso ao mundo. Sim, por isso é necessária uma válvula de escape. O sentimento oceânico que embalou as noites mal dormidas de Freud... a bengala temida por todos aqueles que não conseguem dela se livrar. A fé de muitos espíritos com um dos olhos vendados. A ciência de muitos senhores respeitados, que não sabem em que chão pisam. A arte libertacionária, livre dos preceitos morais e livre de qualquer julgamento racional. Diria Platão, salve as mousas que tomam a razão do artista e o deixam criar em estado de graça. Então, qual era a bengala, o sentimento oceânico, do singular Fausto? Aquele que não tinha a coragem expressiva do filho de Goethe para vender-se a um demônio que o quisesse, mas que tinha, pulsando em si mesmo, a vida de muitas vidas, a sabedoria de muitas sabedorias, a paixão de poucas gentes. O amor... o amor de sabe-se lá o que. Mas que, ora caminha ou não, transferia com segurança a outro alguém que o lançava, com indiscutível precisão, ao Vazio. Ficou sempre à mercê da roda da fortuna que, grandiosamente, desestabilizava os simples humanos. Mas, diante de si, ardia a frequência subliminar de não ser um simples humano. Haja vidas, haja vivências, haja tanta humanidade que o humanizou ao logo depois.

sábado, 26 de junho de 2010

Malleus Maleficarum



A Serra

"A serra era um meio de execução extremamente cruel, no qual a vítima, suspensa pelos pés, era serrada ao meio, de cima para baixo, a partir de entre as pernas. Esse tipo de execução podia ser levada a cabo com qualquer tipo de serra de lenhador utilizada a quatro mãos e de dentes grandes.
(...)
A serra era aplicada freqüentemente a homossexuais de ambos os sexos, principalmente a homens. Na Espanha, a serra foi um meio de execução militar até meados do séc. XVIII, segundo várias referências, que não citam, todavia, um só caso concreto. Na Catalunha, durante a guerra da Independência (1808-1814), contra os exércitos de Napoleão, os guerrilheiros espanhóis submeteram dezenas de oficiais franceses e ingleses à serra, sem se preocupar muito com as alianças do momento. Na Alemanha, a serra estava reservada aos cabeças de movimentos rebeldes e na França, às bruxas 'engravidadas por Satanás'."

Este techo foi retirado do Compêndio de Instrumentos de Tortura e Execução na Idade Média Européia, o MALLEUS MALEFICARUM. Esta obra era uma espécie de manual de instrução de reconhecimento e execução dos seguidores de satanás, bruxas, feiticeiras, magos e homossexuais.

E a Roda da Fortuna gira...

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Prece Irlandesa




Prece Irlandesa

Que a estrada se abra à tua frente,
Que o vento sopre levemente às tuas costas,
Que o sol brilhe suave e morno em tua face,
Que a chuva caia de mansinho em teus campos,
E até que nos encontremos de novo,
Que Deus te guarde na palma de Suas mãos.

sábado, 29 de maio de 2010

Passagem

Agora estavam todos de pé, ainda em círculo, mas de pé. Haviam largados os instrumentos no chão, mesclando-os ao capim semi-morto. Tinham percebido que algumas pedras, como ametista e ônix, haviam se perdido no meio do capim e não voltariam mais. “Não se importem” – fez-se ouvir Santhiago – “a terra tratou de cuidar do que é dela e nós havíamos nos esquecido de entregá-la”. Apagaram as velas, o círculo foi fechado, mas incensos permaneceram até que os ventos os apagassem. Poucos ali podiam perceber a presença inigualável do Senhor de Dias, mas ele se revezava entre os presentes, soprando-lhes nos ouvidos os segredos de suas almas. Ele cuidou para que algumas portas permanecessem fechadas. Se abertas, grandes causas pesariam sobre Santhiago. E ele sabia disso. Era o único que poderia sentir a grande Roda da Fortuna rangendo um novo movimento, que poderia sentir as Moiras tecendo as vidas dos viventes, o grande Senhor dos Ventos soprar de Edé, a Senhora da Noite se alegrar em seu reinado que acabava de chegar. Que sabia que o poderoso e supremo Senhor que habitava o Verde observava a tudo, enquanto se esvaía nas plantas ao redor.

_ Pergunte o que você quer saber ao Simão – um tanto soberbo, Asrareh largou a taça de vinho após regar-se dele.
_ Eu quero saber sobre minhas privações.
_ Privações? – Santhiago, lúcido, sereno e atento, mergulhou fundo nos olhos de Asrareh e Simão – Que privações?

Simão ergueu-se em sua voz e encheu-se de uma sabedoria neófita.

_ Durante sete dias, sem cafeína, carne vermelha, ovos, leite, qualquer alimento que tenha tido sangue, vida, abstenha-se de práticas poucos aconselháveis como jogos de azar (azar!), não entre em água corrente e não faça sexo. Após os sete dias, vida normal.

As nuvens pareciam concordar que Santhiago fala-se. Os Senhores ali presentes riam, mas se iravam. Eram suas vozes mal ouvidas, mal colocadas. Era a fala de um de nós sendo confundida com a dos Senhores. “Diga algo, Santhiago, diga”.

_ Esqueça o que Simão acabou de dizer. – Santhiago sentiu-se intrometido, mas precisava disso – Nada de privações.
_ Mas elas são necessárias – argumentou, mal mas argumento, o rapaz recorrendo ajuda a Asrareh e Simão.
_ Santhiago, eu tive as privações. Ele também tem que ter.
_ Simão, não é porque você se privou de algumas coisas que todos tem que se privar também. Seu início foi diferente. Não é necessário a ele que se prive. – lançou olhar ao rapaz – Preocupe-se, apenas, em viver. Privações são negações à vida. Quando formos embora, tome um banho, vá para o quarto e durma. Acorde de manhã, perceba que a vide é maravilhosa do jeito que ela é. Não se prive do que você gosta. Não se castre. Viver ultrapassa tudo isso. Vá sim ao mar, ao rio, coma e beba o que te agrada, mas com o cuidado necessário à sua saúde. – Olhou para o rapaz e a sua namorada que se encontrava próxima a ele – E faça sexo sim.
_ Mas Santhiago, eu me privei de tudo isso. Porque está liberando pra ele? Pelo menos, prive-o de sexo até amanhã.
_ Simão, não posso privá-lo porque isso não é de nossa responsabilidade. O sexo é intimo dele. Ele faz quando o decidir. Alem disso, lembre-se que as primeiras formas de religião no mundo tinham seu ponto máximo no orgasmo. O orgasmo era visto como o momento mais próximo da Divindade. Ame! Viva a sua vida, vida a vida neste mundo e se alimente de cada coisa que te fortalece. Apenas viva sem se preocupar com regras desimportantes.

Ashré!

domingo, 23 de maio de 2010

Nostalgia

Com trechos de Rudolf Rotchild...



"Então, um dia, o homem só se sente num jardim, livre assim"




"... e se atrai por uma única flor"




"... que mais parecia um jasmim"



"... aproxima, admira"



"E a história começa enfim"



Nostálgico!

sábado, 22 de maio de 2010

Magro - Crônica

MAGRO


Estive pensando em quantas pessoas existem que não exercem funções que lhe convém. Tentei olhar em seus olhos, mas ela resistiu e resolveu fechar um dos olhos. Parecia não querer que eu visse cinquenta por cento de sua alma. Talvez vendo os cinquenta por cento restantes de sua alma, eu veria que ela não exerce a função que lhe convém. Assim como eu. Entrei em sala de aula, observei os alunos e tive medo. Muito medo. Não deles, mas do que eu poderia fazer com eles e eles comigo. Medo da situação que se tornou comum, a grande performance que somos obrigados a fazer. Professor é performático, alunos tanto quanto. Seguimos estereótipos do aluno mal educado e rebelde, do professor sem paciência e ultrapassado que não consegue coordenar seu conhecimento antiquado com a moderna atitude do aluno, o rebelde. Estranho! Estereótipos que compramos. Por isso pensei nas funções que não nos convém. Mas, existem aqueles! E este é o rapaz pra quem dedico este texto, a quem chamo de personal assaltante. O papel de assaltante pessoal lhe convém como nenhuma outra função a outro alguém.
Sai pela rua próxima a uma praça de uma igreja menor que a central, eu tinha saído de um dia inteiro de sala de aula e a rua era um bom percurso a lugar algum até que eu retornasse a meu eixo. Sim, educação pesa! Já havia chegado a hora do império da lua cerca de umas duas horas e eu olhando as pessoas reunidas na praça, esperando algo na igreja. Culto, missa, reunião, gente acumulada em torno de pouca coisa. Sentei, então, num banco já na esquina da praça, onde os carros passavam mais próximos a mim que uma voz de qualquer um. Deixei a mochila ao lado, acendi um cigarro e deixei Cronos narrar o instante. E num é que muitas pessoas ali pareciam ter menos propósito do que eu... acabou o cigarro e a noite perdeu o sentido. Lembro de ver um rapaz sentado em sua moto desligada, ostentando prazer pra ninguém, esperando alguém sair da igreja. Deduzi, era sua namorada. E ela saiu, bonita porém deselegante. Rancoroso por eu ter rompido conversa com ele, Cronos se encarregou de me mandar companhia. Ele estava mal vestido, parecia sujo, feio, e um volume na cintura deixava no ar a silhueta de uma arma. Educadamente, o rapaz estendeu a mão e me cumprimentou.

_ E ae! Tem o que pra bandido aí?
_ Como? – eu juro que não havia entendido.
_ Me arruma cinco reais aí.

Eu entreguei-lhe cinco reais que estavam em meu bolso. Não era coincidência. Cronos sabia que eu tinha reservado esse dinheiro no bolso pra pagar minha passagem de ônibus pra casa.

_ Deixa eu te perguntar uma coisa, você mora onde?
_ Próximo à universidade – menti.
_ Você é filho de policia? É dedo duro?
_ Não. Claro que não.
_ Tá falando a verdade, né?
_ To, claro.
_ Tá fazendo o que aqui?
_ Parei pra fumar.
_ Fumar o que?
_ Cigarro – tirei do bolso a carteira de cigarros e o ofereci, ele segurou a carteira e eu lhe entreguei o isqueiro também.
_ Fala a verdade, você tem mais dinheiro aí, né?
_ Que nada. Não tenho não – menti de novo.
_ Tem o que aí na mochila?
_ Nada – abri e mostrei a ele. Havia diários de classe das minhas turmas.
_ Você é professor?
_ Sou sim.
_ Po, você não é mesmo filho de polícia nem dedo duro, né? – ele desistiu de me pedir dinheiro e a senha foi dizer que sou professor. Não se tira leite de pedra!
_ Não, to falando.
_ Deixe eu ver esse celular aí?

Fui tomado por um insight: isso era um assalto. Mas ele era tão educado pra um assaltante. Eu tinha uma dívida com Cronos e ele tava me cobrando, compreendo mas não acho justo. Se era um assalto, era atípico. E eu seguiria esse padrão. Entreguei o celular a ele, mas ele não pegou.

_ Seguinte – disse desviando o olhar – quer ficar com o chip?
_ Quero. – abri o aparelho sem desligá-lo – Posso apagar as fotos e as mensagens? É muito pessoal.
_ Não, pode deixar que eu apago pra você.
_ Tem certeza? Porque é muito pessoal.
_ Po, num sou moleque não. Eu apago pra você.
_ Tá certo. – entreguei-lhe o celular. Ele me devolveu a carteira de cigarro, mas ficou com um e o isqueiro. Levantou, me deu a mão novamente. – Seguinte, vou por ali. Não venha atrás de mim, não me dedura, ok. Boa noite! Valeu aí. – E sumiu seguindo a rua atrás de mim.

Ele foi educado, simpático, porém feio e mal arrumado. Eu poderia dar-lhe um abraço por gratidão. Afinal, ele me deixou tão calmo que eu não percebi se tratar de um assalto. Gostei dele. Ele exercia uma função que lhe cabia. Enfim, alguém na sociedade que cumpria bem uma função. Em tantos mundos incabíveis, realidades desfocadas, alguém se sentia confortável no que fazia.
Nos dias seguintes, eu tive medo de andar pelas ruas. Cronos poderia me cobrar mais coisas, ele era rancoroso. Mas eu me permiti continuar a vida como se eu não tivesse uma dívida. E Senhor do Tempo me colocou frente a meu assaltante mais algumas vezes. Certa noite saí com minha prima e um humano qualquer de uma boate e chamamos um taxi para ir a um bar. Atravessamos a rua para esperá-lo. E quem veio foi meu assaltante. Caminhando como quem passei à luz das três horas da manhã, num passeio despreocupado. Levava seus braços cruzados para trás e vinha em nossa direção. Eu disse para nós sairmos de perto, e ele disse “Calma, amigo, ta tranquilo”. Entramos no primeiro taxi que passava e nos livramos de pagar a dívida. Mas ela foi cobrada novamente, em parcela menor.
Em dez minutos já seria nove horas. O fiscal da emut me informou que meu ônibus chegaria nove e dez da noite. Tempo suficiente para eu ir com minha amiga ao ponto de ônibus dela e retornar. Não daria cinco minutos. Foi o que fiz. No caminho, falava de meu assaltante e do receio de vê-lo novamente, já que isso tinha acontecido algumas vezes, mas sempre há distância. Eu a deixei e voltei ao meu ponto. Ponto já vazio e nada do ônibus. Sentei só no banco do ponto vazio e meu assaltante surgiu de repente e sentou-se novamente ao meu lado esquerdo – um padrão que ele segue.

_ E ae, boa noite! – já éramos íntimos – Amigo, não vou te assaltar nem pegar nada seu. Eu to aqui pedindo uns dois reais, se você puder me ajudar. É que eu to devendo trinta reais à boca. Se você puder me ajudar com dois reais.

Meu novo celular estava na minha mão, diante dos olhos dele e de todo mundo que pudesse nos ver. Olhei rápido pra rua e pensei “é pra lá vou correr se ele pedir meu celular”, não que eu me importasse com o prejuízo do celular que custou setecentos reais que eu havia pago à vista, mas porque isso seria pagar a Cronos além da minha dívida. Levantei, sem dizer uma palavra, olhei em seus olhos como quem joga sobre ele uma mistura de raiva com carinho, tirei duas moedas de dois reais do bolso – e, mais uma vez, era exatamente o que eu tinha no bolso, o mesmo valor que ele pediu, de novo! – e entreguei-lhe as moedas. Sentei de novo.

_ Obrigado! – ele levantou e andou cerca de quatro passos e virou-se para mim, novamente – Você não vai ficar a pé, né?
_ Não, tudo bem!
_ Ok. – e saiu passando pelas pessoas, como quem não as via.

Mais um encontro com meu assaltante pessoal. Ele era educado, e agora se mostrou preocupado com o fato de eu ficar a pé ou não. O fato é que ele cumpre sua função social de forma muito confortável. Fiquei com pena dele. Pensei em vê-lo estampado na capa do jornal, morto, assassinado por alguém da boca. Decidi que eu iria denunciá-lo à polícia. Algumas horas depois, eu estava na varanda da minha casa olhando o céu e as plantas que sobem as paredes do nosso quintal. Lembrei dele quando eu pensava algumas questões de filosofia. Platão... Wittgenstein... Heidegger... Ricoeur, Kant, Descartes... meu assaltante, provavelmente, nunca ouviu falar nesses caras. Não queria denunciá-lo. Eu queria que ele conseguisse calcular logaritmo e compreendesse a estética transcendental do Kant. Que ele soubesse que Munch pintou o quadro O Grito e Anita Malfatti fez a primeira exposição de arte moderna no Brasil no início do século vinte. Tive pena dele. Eu o imaginei entre meus alunos do estado ou entre meus colegas de faculdade, quem sabe cursando um mestrado na UENF ou na UERJ, UFRJ, UNB...
Para encerrar o medo do futuro alheio, recoloco uma frase minha mesmo, dita em outros papéis: era como querer brincar de ser deificado.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

De Viviane...

Não é meu. O texto não me pertence. Nada me pertence. A obra é autônoma. E desta vez, uma genuína obra de Viviané Mosé...

Receita Pra Lavar Palavra Suja

"Mergulhar a palavra suja em água sanitária. Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia. Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida. Existem outras, e a palavra amor é uma delas, que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente. São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas. Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada. Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. Agora nunca vi palavra tão suja como perda. Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua. O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar. O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha. Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva ,pode o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade. Já a palavra força cai bem em qualquer mistura. Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido. A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com a palavra durante alguns dias. Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade. Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa. Uma palavra limpa é uma palavra possível."

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Nem Tudo Vira Crônica



Não sei quem é o autor. Portanto, perdoe-me Autor deste desenho mas foi maior do que eu.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

sem importância

Mais um sem importância...


Eu só precisava de um atalho. Não para chegar mais rápido em casa, mas para me demorar ainda mais no caminho antes que fosse tarde demais. Eu não queria entrar em casa e fechar minha noite, sem ter passado por um instante que fosse de susto e surpresa com qualquer coisa que me fizesse perder o sono. Por fim, a rua era a mesma. O caminho até minha casa era o mesmo. As pessoas e os carros na rua eram os mesmos... Os mesmos? Já terminando meu percurso, frustrado pela falta de acontecimentos no caminho, me intrometi de modo invasivo entre duas mulheres. Uma estava do outro lado da rua, sentada, sem nada pra fazer. A outra, no mesmo lado que eu, varria a frente de seu trailer de cachorro quente. Minha invasão entre elas não seria nada para mim se não fosse o olhar estranho com que a mulher da vassoura me presenteou. Ela deixou um longo suspiro para que eu a visse e foi mais invasiva que eu com seu olhar estranho. Não deixou que eu passasse antes de ouvir seu comentário: “Cazuza não morreu”. Por um instante tive vontade de parar, tive vontade de buscar minha coragem perdida para devolver seu olhar, quem sabe eu não veria em seus olhos o Cazuza que não havia morrido... Quem sabe eu não encontraria um espelho qualquer naquele olhar estranho que me deixasse ver o que via aquela mulher, que ninguém era sem aquela vassoura; e, para mim, sem aquele comentário mau dito... Por um instante eu queria parar e encontrar nela os vestígios que inspiraram aquele comentário, mas meus pés não estavam dispostos a parar. Agora faltava pouco para alcançar o portão de meu prédio. Faltavam alguns passos e eu me perturbaria ainda mais; quando meus passos fossem silenciados, seria a voz da mulher da vassoura que eu ouviria. Mas novos espíritos brincalhões surgiram. Lembrei-me de quando, há alguns meses, eu estava num prédio da prefeitura numa longa espera para ser atendido, apenas na intenção de renovar uma bolsa de estudos, já irritado com a hora e a falta de gente para ver. Lembrei-me de quando, então, entrou um rapaz e sentou-se ao meu lado. Eu não queria deixar o silencio ditar as regras, mas foi ele quem brindou-nos com a iniciativa.

_ Você estuda na “Filosofia”, não é?

_ Estudo. – foi suficiente para deixar claro ao silêncio que naquele dia não era ele quem falava, ainda assim deixamos que o silêncio se divertisse um pouco mais. E ali ficamos. Foi quando peguei carona na iniciativa dele. – Você já me viu por lá?

_ Não. – mesmo não querendo deixar para o silêncio a chance do momento, o rapaz falava muito pouco. Eu mesmo não entendia tanta objetividade.

_ Os estudantes da “Faculdade de Filosofia” são tão parecidos assim? Padronizados? – perguntei.

_ Você tem o estilo e o jeito Cazuza. Os estudantes da “Filosofia” têm esse estilo.

O jeito Cazuza. E agora, o Cazuza que não morreu. O pequeno caminho até o portão do meu prédio se alargou. A rua já parecia vazia, um vazio que só as vozes do rapaz e da mulher da vassoura podiam preencher. Cazuza! Lembrei-me inevitavelmente do Cazuza. De seu jeito, sua arte, sua aparência, seu estilo Cazuza de ser. Mas ele em si pouco interessava. Era o jeito de viver que ele imprimiu que interessava. O que interessava era... O que eu tinha com isso? Por que a mulher que não era ninguém sem aquela vassoura viu em mim a possibilidade da não-morte do Cazuza? E que estilo era esse que um rapaz profeta do passado teria visto em comum nos estudantes de uma mesma faculdade a ponto de me reconhecer, mesmo nunca tendo me visto? Já no portão, eu não sabia mais se falava do Cazuza em primeira ou terceira pessoa. Para tanto, era o Cazuza que viam em mim que andava naquela noite. Eu já poderia dizer “eu, Cazuza”. Mas ele ficaria morto e na memória e discos espalhados por esse Brasil misto. Era outro o Cazuza que andava tentando chegar ao portão, eu. Já usava a primeira pessoa para falar dele que viam em mim, que não era ele de fato. Minha briga com a primeira e terceira pessoa do singular só evidenciava as tantas vezes que vi Elis Regina numa amiga, Clarice Lispector em outra pessoa ou mesmo Tim Maia num magrelo da esquina.
Enfim, o portão. Era hora de começar momentos destinados as muitas pessoas do singular e pessoas singulares. Hora de reconhecer que o acaso me presenteou com um belo atalho.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Hein?

Nada com nada. O texto que vou postar não merece ser publicado, mas como é uma característica minha escrever meios (sim, coisas sem começo nem fim, pé nem cabeça) vou publicar. Quem ler... lembre-se: é só o meio.

_ Foucault afirma que existe um risco em encerramos nos muros da exclusão social, às margens, aqueles que a sociedade não quer mais. Eles podem se organizar. Os excluídos se organizam tão bem ou melhor do que a sociedade.
_ Não compreendo. Quais possibilidades eles tem?
_ Estrutura. Desde que haja um grupo, por menor que seja, estamos falando de um grupo social. E o que garante sua subsistência é a organização. Uma estrutura blindagem contra o desaparecimento. Quer desfazer essa organização dos marginalizados? Desestruture-os.
_ Alguém teria dito que basta o emocional...
_ Relações de poder. O que sustenta uma estrutura são as relações de poder. Um grupo, por convenção, determina as relações entre si e distribuem o poder. Grande parte desse poder se concentra nas mãos de poucos, ou de um único. Está estabelecida a hierarquia. Desfaça essa hierarquia, enfraqueça o poder e terá a estrutura abalada.
_ Que distribuição de poder garante essa estrutura? Não somos multilaterais.
_ Um líder. Não há relação de poder sem um que manda e um que obedeça. O príncipe e os súditos. Ligados pela hierarquia, pela força do poder. Mas quem determina quem é o príncipe e quem são os súditos? É preciso entender os detalhes de cada grupo, a micro sociedade.
_ Romperemos com essa relação.
_ Sim. Se a teoria do Foucault estiver certa, precisamos nos ater aos movimentos dos que estão nos muros da exclusão. Precisamos desestruturá-los. Atacando a relação de poder. Num raciocínio próximo ao de Machiavel, é perigoso para o príncipe ser odiado pelos súditos. Um príncipe odiado não tem respeito. Perde a credibilidade. Quem sente ódio quer acabar com aquilo que lhe causa o ódio.
_ Provocar o ódio dos que estão sob seu poder? Causaríamos uma rebelião.
_ Mais difícil, para nós, seria se eles estivessem ligados por laços afetivos. Não se rompe uma relação ligada pelo amor. O vínculo de obrigação passa pelo coração e pouco poderíamos fazer. Mas se a convenção for estabelecida por vínculos que não sejam amorosos, o que é radicalmente mais comum, então temos o trunfo. O príncipe precisa ser odiado pelo povo e o povo pedirá sua cabeça.

domingo, 2 de maio de 2010

Filosofia

Um grande debate valida as questões em torno das possíveis definições de "Filosofia". Elencar as muitas possíveis definições de "filosofia" pode tomar o tempo de quase três mil anos de história do pensamento e ainda atravessaríamos muitos anos de boa briga e bons embates. O fato é que as tentativas de definir "filosofia" ultrapassam as filosofias de muitos pensadores desde que se tem notícia desse saber, ainda que anterior a Tales de Mileto e a nomeação de tal por Pitágoras. De acordo com o pensador alemão Heidegger, a pergunta “Qu´est-ce que la Philosophie?” (“O que é isso – a Filosofia?”), título de uma de suas conferências, apresenta antes algumas questões em torno da própria formulação da pergunta que revela um modo próprio do pensar grego, que define todo o modo do filosofar ocidental. De certa forma, as muitas filosofias construídas desde então, partem da pergunta categórica “ti estin” (“O que é isto?” em grego, também uma categoria aristotélica). Assumida na filosofia kantiana como, também, um modo de conhecer a realidade via categoria.

De acordo com alguns pensadores contemporâneos, a filosofia acabou e Hegel seria o último grande filósofo. Este pensamento é marcado pela idéia de que filosofia se dá como um grande sistema. Não há uma unidade em toda filosofia, mas existem filosofias e sistemas. Seria bom se nós conseguíssemos entender o que é um sistema filosófico. Quando um filósofo filosofa, ele cria um sistema onde suas questões passam por todos os campos do conhecimento – saber; mas vale lembrar que existe uma questão cerne que move todo o sistema. A questão cerne movimenta o pensamento filosófico daquele filósofo. Quanto a nós, ler seu autor é entender primeiro essa questão e conseguir vê-la nos outros campos do sistema desse filósofo, como cerne. Ainda nesse raciocínio sobre sistema filosófico, todo filósofo tem uma questão cerne, tem uma ética, uma epistemologia, uma ontologia, uma estética e etc. E cada um desses campos tem a questão central de fundo. Algo como, entender a ética de Platão sem conhecer seu mundo das idéias é desprezar todo seu sistema. Da mesma forma que entender a estética de Kant sem compreender sua questão central, é jogar fora esse grande filósofo. Sendo assim, dizem alguns autores que Hegel foi o último filósofo por ter sido o último que teve um sistema filosófico.

Os problemas com as definições de filosofia vêm de todos os cantos e de todos os tipos. Um grande erro que não dá pra evitar é o de associar filosofia com pensamentos de reflexão, como frases feitas, frases soltas que gostam de dizer que são axiomas, “verdades” soltas mais subjetivas que universais, que só revelam a falta de intimidade com a filosofia. Comumente ouvimos “filosofia de vida”, ou mesmo “a minha filosofia”, ou “sigo a filosofia x”... Bom, não estou indo contra a idéia de a filosofia estar no dia a dia, mas acho que um pouco de hermenêutica (meio heideggeriana rs) ajuda aos tantos: a filosofia como detentora do “logos” se desvela no discurso. Para tanto, o discurso acontece de modo denso. É pelo discurso que a razão se exerce. Na verdade, é como se a filosofia só fosse possível pelo discurso, pelo exercício da razão via esse discurso. (repetitivo, né?! rs) Por isso, um bom estudo hermenêutico clareia a compreensão de filosofia. Sem desprezar um método próprio para cada filósofo.

Bem, esse extenso post é para levantar a discussão quanto às possíveis definições de “filosofia”. Porém, vamos abandonar as definições equívocas como “reflexão”, “criação de conceitos”, “criação de teorias” e etc. Eu digo “equívocas” porque primárias.

Festival de Teatro Aberto de Campos/RJ

Tornou-se comum ouvir por aí nas ruas de Campos que a cidade se tornou uma cidade-fantasma. Que nada acontece além de desfalques na política e economia da cidade. Que nenhum mortal sobrou pra reerguer a cidade energia. Que energia nenhuma sobrou. Entre os moribundos que aqui vagam sempre tem um pra apontar o dedo e dizer, cheio de convicção, que esta é uma cidade com amnésia. Sim, numa cidade de zumbis, que memória queríamos encontrar? Aquela que nos diz ser esta a primeira cidade da América Latina a receber energia elétrica? Que nos diz ter saído daqui um Presidente da República, artistas conhecidos nacionalmente, empreendedores que transitam no exterior? E que nos recorda Antônio Roberto, Orávio de Campos, Marisa Almeida, Ana Beti Braga e Silva, Tânia Pessanha, Dedé Muylarte, Hélvio Santafé, Walnize Carvalho e outros que a minha memória pessoal não deixa lembrar? Talvez tentando remediar essa amnésia generalizada, que beirava o Alzheimer, e para remediar os muitos desvios dos cofres públicos (remediar!), foi criado o Festival de Teatro Aberto. O primeiro da cidade. Podíamos ouvir Thriller de Michael Jackson enquanto víamos a nós mesmos saindo de nossos túmulos em direção ao renascer. Porém, como na lâmina O Julgamento do Tarot de Marselha, a ressurreição é penosa. Tão penosa que poucos se deram a esse trabalho. Pois é, lá estava a Cia de teatro Os Ciclomáticos e diante deles uma pequena platéia. Meia dúzia de despertos pra o que estava acontecendo na cidade. Em seguida, o coral da FDC e, após, um grupo de BH contando a história do rei Édipo.
Ignorando a divulgação do evento (divulgação? Acho que não teve.), os microfone que não funcionavam, a falta de informação para ser dado ao público, a falta de clareza do evento para a platéia - sim, porque o público sequer sabia para onde ir e onde estava acontecendo o que – e principalmente o propósito do evento e a escolha dos espetáculos, pode-se dizer que pelo menos a cidade começa a se remexer no leito, esboçando um possível despertar. Mas não nos enganemos: ainda estamos sob efeito de fortes ansiolíticos.

sábado, 1 de maio de 2010

Quase


Eu juro que queria muito ter o que escrever. Escrevendo o mundo se torna menor. Menor, ele se torna mais acessível, mais humano... próximo, por isso humano. Mais aqui, no instante presente, mais no momento palpável. Menor, o mundo é mais habitável. Não há ninguém. Não há muitas coisas desconhecidas. Não há mundos possíveis, nem lógicas difusas, modais... talvez sequer haja mundo possível. Mundo presente. Cabível! Resta o sabe-se lá o que! Resta o nada de sempre. O corriqueiro desespero pelo instante que não se explica. Pelo que se explica, mas não é importante. Perdão! Eis o nada da vida: eis o nada de ninguém. O sem som, sem dom, sem nó! E o mundo se torna menor: ele está todo aqui em meus dedos!

Vinho com Sensatez

Era o samba de bons carnavais que se ouvia romper da janela atrás dele. Olhou pouco preocupado procurando ver uma mulher qualquer que o inspirasse qual perfume espalhar exageradamente pelo corpo. Estava nu diante do espelho. Precisava se certificar de que tudo estava de acordo com suas rígidas regras para andar por aí. Abaixou até seus pés e sentiu seu calcanhar, sentiu a pele lisa sem rachaduras. Olhou pela última das muitas vezes as unhas dos pés; sentiu suas pernas, suas coxas cheirando a creme de tangerina. Num acesso de agilidade passou sua mão por seu peitoral liso, depilado, certificou-se mais uma vez de que a depilação havia sido bem feita. Queria peitos lisos e barriga também, como quem nunca tivera pêlos por ali. Ainda exibindo seu corpo nu a si mesmo, procurou pelo convite. Não poderia esquecê-lo em parte alguma. Precisava que no dia seguinte estivesse com ele em cima da mesa de seu quarto. Era uma boa ocasião para nada de tão importante assim. Voltou a si mesmo. Voltou a seu reflexo no espelho. Não se cansou de ver o próprio corpo nu, exibindo uma boa forma. Aproximou-se do espelho esperando encontrar imperfeições em seus braços musculosos, mas só conseguiu ver uma pele impecavelmente lisa, clara, porém bronzeada pelo sol da rotina. Sentiu também seus ombros e deteve-se ao último pêlo que faltava retirar. Com este travaria uma bela batalha. Batalha que marcaria o término de sua guerra. Ali estava ele, o último pêlo sobrevivente de horas com pinças em luta corpo a corpo. Resolveu que este não seria mais o seu problema, mirou firme no sobrevivente, apertou a pinça e num acesso de fúria o arrancou. Ficando apenas a fina dor, deixou espaço para o alívio.

Agora, já contente com mais essa etapa vencida, voltou-se à imagem de corpo inteiro. Sentiu a presença do deus Apolo e arrependeu-se de ter jogado três importantes telefones no lixo. Como se estivesse esnobando o mundo e as pessoas que pedem sua atenção. Perdeu-se mais uma vez em sua própria imagem no espelho. Nu. Como se o reflexo da lua o ironizasse no copo, despediu-se dela sem remorso e embebedou seu corpo com vinho tinto. Mal sabia de onde viera o vinho. Sabia apenas que era tinto. Talvez de um boteco qualquer de uma esquina qualquer sem jeito. Embebedou-se. Gostava de sentir o álcool descer por sua garganta enquanto podia se sentir mais excitado. Trocou a pinça de mão para equilibrá-la com o copo na outra, aproximou do espelho e mais uma vez foi às sobrancelhas. Verificou cada pêlo, cada desenho deles e retirou meia dúzia de esquecidos por cantos entre uma sobrancelha e outra. Confessou sua vaidade. Confessou sua preocupação com a beleza a si mesmo. Confessou enquanto levava o copo mais uma vez à boca. Seu último gole estava por vir, sem cerimônias escorregou o vinho por entre seus lábios num ato quase erótico. Resolveu, então, que deixaria mesmo a janela aberta. Olhou por ela procurando ver na rua uma mulher que lhe inspirasse o perfume certo para aquela ocasião. Olhou pela janela, mas de longe para que ninguém o visse. Sua nudez era guardada para si próprio.

Sua barba estava aparada, mas deixou boa parte dela para não perder seu peso da masculinidade. Era como se a barba deixasse escapar sua masculinidade por trás de tantos cremes, perfumes, depilações. Repetiu novamente o ato de alisar seu peitoral e seu abdômen como quem verifica a eficácia da falta de pêlos, ato que estava disposto a repetir muitas vezes durante a noite. O cabelo estava impecável. Colocou óleo de cabelo para deixar seus fios lisos com aspecto de molhado, creme para facilitar o pentear, levou muito tempo penteando. Nada que ele considerasse sacrifício. Cada vez que ele se olhava no espelho, se achava um homem muito bonito, por isso nem mesmo deixava de passar protetor em seus lábios. Com outro espelho, virou de costas para o primeiro e quis ver-se. Analisou cada músculo das costas, cada parte que não poderia ver sem ajuda dos dois espelhos. Suspirou um alívio de contentamento e jogou o espelho de mão sobre a toalha molhada em cima da cama. E como fazia frio! Ele podia sentir o frio por ignorar suas roupas. Pensando em deixar, enfim, o seu próprio reflexo em paz, se olhou como quem olha o Davi de Michelangelo, apertou sua mão contra o coração e em seguida apagou a luz. Ele deixou a janela aberta, a toalha molhada no pé da cama junto ao espelho de mão e deixou que seu corpo caísse sobre os lençóis desarrumados da cama. Pensou que poderia ser o homem mais feliz do mundo e não tardou em desmaiar num profundo sono.

queremos ser vistos...

Clarice hoje não parecia nada consigo mesma. Era o cabelo solto sobre os ombros, o olhar mal direcionado, a calma que irrita... A chaleira no fogo fervia uma água, nunca no ponto exato. Falava de exatidão consigo mesma. Era o fim do dia. A água fervia sem propósito. O olhar mal direcionado de Clarice mal atingia o borbulhar dentro da chaleira. Uma mulher em nova idade. As bolhas da água emergiam. Trazendo a força de algo por baixo. Emergem. Emergem. Emergir... Ela pensava no velório de si mesma.

Pensava em quando entrou na cozinha cambaleando pistas das próximas ações. Clarice mal sabia o que fazer, o que rompia incômodos por seu estômago. Pensava em quando tirou a chaleira do armário, sem saber o que trazia em suas mãos. Acendeu o fogo e enfim, reconheceu o fogo. Reconheceu o que doravante a faria não ser mais Clarice e a faria sê-la novamente. Incertezas ocupavam todo o espaço. Trazia a chaleira e mal sabia o que trazia em mãos. Mas acendeu o fogo e restava um instinto de humano. Colocou, então, a água para ferver. Havia tempo que não conseguia fazer um chá. Pensava no fogo aceso, na água... No fogo que, aceso, fazia as bolhas emergirem na água... Pensava no velório de si mesma. Então era o fogo que, aceso, fazia a água borbulhar... E emergir o que estava em baixo. Então era o fogo que fazia emergir... Desvelar. Agora pensava no desvelório de si mesma.

Jogou a chaleira borbulhando dentro da pia. Desligou o fogo com a voracidade que mal cabia em seus gestos. Poderia gritar e esvaziar-se em segundos. Mas preferiu esperar esculpir em torno de seu corpo o que mais se parecia com Clarice. Vestiu-se como Clarice costumava vestir-se. Arrumou-se, pintou-se e enfim, foi ao encontro do fogo que faria emergir as bolhas dentro de si. Deveria correr, o término do dia e o avançar da noite poderia dificultar as coisas... Não encontraria lojas abertas, nem vendedores atrás de balcões. Ainda assim preferiu parar no ponto e esperar um ônibus. Pagaria a passagem com a última moeda na bolsa. Isso não importava. Nem ela mesma importava mais. Queria apenas o seu emergir.

S. Álvaro

Era mesmo uma figura curiosa. Seu olhar trazia histórias. A sala ainda era fria, o mesmo frio pelo desconhecido. Então era ele o foco das atenções. Entrou na sala um tanto receoso, conseguiu ver a todos que o esperavam... um homem, o qual só se via sua barba soberba, duas pessoas de pé que não pareciam ser ninguém importante, mas só marcavam presença. O velho sentou, enfim, para descortinar suas muitas vivências aos homens de pouca fé ali presentes. Deixou escapar um olhar à porta se fechando atrás dele, respirou um dos poucos ares que ainda podia e deixou-se levar pelas perguntas do homem de barba soberba. Teve tempo de se apresentar aos dois de pé que se achavam uma presença qualquer... mas não eram, não para ele. Por um instante, deixou que entrassem nele, buscando em suas vivências palavras que parecessem coerentes, lógicas, com um nexo dentro dos padrões. Mas este que buscam jamais seria o Álvaro. Não o Álvaro que havia criado tudo o que existe após Deus ter feito o mundo vazio. Não seria o Álvaro nascido no ano um, filho de índios largados no vazio criado pelo Deus deixando a eles a incumbência de preencher todo o resto como bem achassem necessário... e fez-se tudo o que existe nesse mundão do Senhor.

_ E como o senhor está, seu Álvaro?
_ Bem, graças a Deus!

Levantou, então, seu tom de vitória conseguido por ter finalmente consertado o último hospital de sua história. O bom andarilho viajante de muitas cidades por interior de hospitais consertando o que havia para ser consertado. Num gesto sutil, deixou fugir uma esperança escondida no fundo de um bolso qualquer da calça... em pouco tempo o homem da barba soberba abriria os portões e o deixaria ir... havia mais lugares a serem consertados, mais ruas a serem descobertas. Suas vivências foram guardadas como quem guarda um tesouro que jamais pode ser descoberto. E o homem tentou tirar de seu Álvaro histórias que parecessem coerentes. Mas não eram suas reais histórias... seu Álvaro queria apenas retornar para seu castelo brilhando ouro que ficava no fundo do mar, onde somente ele pode entrar e desfrutar de uma existência própria, sua, e apenas sua. A aparência frágil deixava enganar os olhos mais desatentos. Repetia com vigor que abrindo os portões do hospital ele saberia chegar a sua casa... queria notícias de seu irmão gêmeo, de seu Brasil querido que ficava dentro da Babilônia, queria poder contar a quem quisesse ouvir como criou tudo o que existe, como sua mãe criou água cuspindo numa chaleira, como Deus havia criado o mundo defecando dentro de uma caixa de ouro feita por seus pais... e escondia sua amada dor onde nenhum homem encontraria, escondia para que jamais pudessem rir dele como qualquer um outro homem que se achasse normal, saudável... e era ele quem consertava os hospitais, não os homens saudáveis. Não se sabe por que ele deixou aquele homem naquela sala fria ir mais adiante do que ele queria deixar. Não se sabe por que, mas ele deixou que o homem da barba soberba fosse adiante em suas vivências... contou-lhe segredos e momentos delicados.

Seu Álvaro usava uma jaqueta azul escuro sobre aquele corpo pequeno, frágil, notável em sua originalidade. Não era qualquer um, era o homem íntimo de Deus, a quem Ele havia dado o poder de criar, de consertar, de falar das coisas divinas para quem as considerassem delírios... E lá se foi seu Álvaro... levantou triste da cadeira após a investigação com aquelas pessoas estranhas, que não haviam respeitado seus cabelos branco-encardidos que muito haviam feito. Saiu pela porta sem poder sentir que voltaria a seu castelo no fundo do mar, pelo menos não nos próximos dias, pelo menos não enquanto dissesse a verdade a quem a considera delírio, pelo menos não enquanto dissesse suas grandes vivências e verdades a homens de pouca fé. Ele não sabia como contar sua humilde vida, comum a todos às outras, para poder voltar para casa... sabia que suas vivências eram como as de todo mundo, mas ele não mais sabia como contá-las do mesmo modo que todos a contam... ele precisava do “castelo” para falar de sua casa velha, pobre, e do “fundo do mar” para falar de sua rua... Mas os homens de sabedoria jamais poderiam compreender o que ele dizia. Saiu da sala com o peso da frustração de não conseguir traduzir em palavras certas o que sentia, quem era, de onde veio... e deixava os homens de sabedoria e pouca fé sentirem nele um pobre homem doente. Ele perdia, assim, as chances de contar as ricas histórias de sua vida... ele perdia ouvidos atentos que poderiam querer conhecer o que somente ele pode ter vivenciado. E lá se foi seu Álvaro, arrastando as sandálias, puxando o mundo consigo, trazendo as memórias de muitas vidas e muitas gentes, e lá se foi... não se sabe para onde, não se sabe para que rua, para que hospital, para que castelo além de um quarto da enfermaria manicomial.

[ainda sem final nem começo]

_ Soube que é militar. Mora num condomínio. Residencial Chatelêt. Disse que ele parece ter vinte e poucos anos, mas tem 43. Faz plantão. Por isso perguntou se aqui havia aeroporto. Queria poder vir de avião porque depois de um plantão, ele estaria cansado demais para uma viagem de ônibus. Contou que ele costuma ir a Campos do Jordão de avião. Disse que dinheiro é banal para ele. Uma das vezes que se falaram por telefone, ele estava irritado porque havia quebrado uma TV nova de sete mil reais. Uma TV de sete mil... que TV é essa, pra custar tanto? Mas, disse que a irritação havia passado, ele iria comprar outra no dia seguinte.
_ O que mais sabe?
_ Nada. O que mais eu teria para saber não me foi dito. Os dias não dão espaço para conversas detalhadas. Um tanto sufocante. Mas, justo.
_ Nenhuma conversa?
_ Ele insistia para que se vissem novamente. Queria que fosse em sua casa. Por mais perto que fosse, a outra cidade continuava sendo outra cidade. O estranhamento era inevitável. Queria ir, mas tinha o medo. O medo do desamparo aparente.
_ Só aparente? O que houve lá?
_ Nada. Só aparente!
_ Sim. O que aconteceu?
_ Não pude saber. Como ainda não posso. Há coisas que transcendem nosso conhecimento sensorial. Nada ouvi. Mal sei quando se viram. Se é que se viram. Note... não há nada de novo. A vida é singular, simples, mas desconhecida. Não sabemos o que aconteceu e nem saberemos. Mal sabemos se de fato aconteceu.
_ O que?
_ O que não sabemos.
_ E se soubéssemos?
_ Anteciparíamos nossa compreensão. E isto não seria espantoso.
_ Não está contraditório?
_ Não só da lógica formal nosso intelecto se serve.
_ Então, do que?
_ Das muitas possibilidades. Dos muitos Vazios e Nadas em que construímos nossos dias. O instante presente é capaz de alterar toda Roda da Fortuna. E nós sabemos disso. Só fingimos que não. Porque o medo também tem seu império.
_ Queria o suicídio?
_ Queria algo pelo que dar a vida. Algo pelo qual valesse a pena perder sua vida. Aparência!
_ O que é aparência?
_ Os instantes. A vida. Aparência. Mas talvez nunca saibamos o que se faz aparecer. Só sabemos o que salta aos olhos. Não diziam os antigos ‘a verdade gosta de esconder-se’?
_ Desolador. Por que não chegou a um desfecho?
_ Sabia que o valor de algo estava na sua perda.