sábado, 1 de maio de 2010

Vinho com Sensatez

Era o samba de bons carnavais que se ouvia romper da janela atrás dele. Olhou pouco preocupado procurando ver uma mulher qualquer que o inspirasse qual perfume espalhar exageradamente pelo corpo. Estava nu diante do espelho. Precisava se certificar de que tudo estava de acordo com suas rígidas regras para andar por aí. Abaixou até seus pés e sentiu seu calcanhar, sentiu a pele lisa sem rachaduras. Olhou pela última das muitas vezes as unhas dos pés; sentiu suas pernas, suas coxas cheirando a creme de tangerina. Num acesso de agilidade passou sua mão por seu peitoral liso, depilado, certificou-se mais uma vez de que a depilação havia sido bem feita. Queria peitos lisos e barriga também, como quem nunca tivera pêlos por ali. Ainda exibindo seu corpo nu a si mesmo, procurou pelo convite. Não poderia esquecê-lo em parte alguma. Precisava que no dia seguinte estivesse com ele em cima da mesa de seu quarto. Era uma boa ocasião para nada de tão importante assim. Voltou a si mesmo. Voltou a seu reflexo no espelho. Não se cansou de ver o próprio corpo nu, exibindo uma boa forma. Aproximou-se do espelho esperando encontrar imperfeições em seus braços musculosos, mas só conseguiu ver uma pele impecavelmente lisa, clara, porém bronzeada pelo sol da rotina. Sentiu também seus ombros e deteve-se ao último pêlo que faltava retirar. Com este travaria uma bela batalha. Batalha que marcaria o término de sua guerra. Ali estava ele, o último pêlo sobrevivente de horas com pinças em luta corpo a corpo. Resolveu que este não seria mais o seu problema, mirou firme no sobrevivente, apertou a pinça e num acesso de fúria o arrancou. Ficando apenas a fina dor, deixou espaço para o alívio.

Agora, já contente com mais essa etapa vencida, voltou-se à imagem de corpo inteiro. Sentiu a presença do deus Apolo e arrependeu-se de ter jogado três importantes telefones no lixo. Como se estivesse esnobando o mundo e as pessoas que pedem sua atenção. Perdeu-se mais uma vez em sua própria imagem no espelho. Nu. Como se o reflexo da lua o ironizasse no copo, despediu-se dela sem remorso e embebedou seu corpo com vinho tinto. Mal sabia de onde viera o vinho. Sabia apenas que era tinto. Talvez de um boteco qualquer de uma esquina qualquer sem jeito. Embebedou-se. Gostava de sentir o álcool descer por sua garganta enquanto podia se sentir mais excitado. Trocou a pinça de mão para equilibrá-la com o copo na outra, aproximou do espelho e mais uma vez foi às sobrancelhas. Verificou cada pêlo, cada desenho deles e retirou meia dúzia de esquecidos por cantos entre uma sobrancelha e outra. Confessou sua vaidade. Confessou sua preocupação com a beleza a si mesmo. Confessou enquanto levava o copo mais uma vez à boca. Seu último gole estava por vir, sem cerimônias escorregou o vinho por entre seus lábios num ato quase erótico. Resolveu, então, que deixaria mesmo a janela aberta. Olhou por ela procurando ver na rua uma mulher que lhe inspirasse o perfume certo para aquela ocasião. Olhou pela janela, mas de longe para que ninguém o visse. Sua nudez era guardada para si próprio.

Sua barba estava aparada, mas deixou boa parte dela para não perder seu peso da masculinidade. Era como se a barba deixasse escapar sua masculinidade por trás de tantos cremes, perfumes, depilações. Repetiu novamente o ato de alisar seu peitoral e seu abdômen como quem verifica a eficácia da falta de pêlos, ato que estava disposto a repetir muitas vezes durante a noite. O cabelo estava impecável. Colocou óleo de cabelo para deixar seus fios lisos com aspecto de molhado, creme para facilitar o pentear, levou muito tempo penteando. Nada que ele considerasse sacrifício. Cada vez que ele se olhava no espelho, se achava um homem muito bonito, por isso nem mesmo deixava de passar protetor em seus lábios. Com outro espelho, virou de costas para o primeiro e quis ver-se. Analisou cada músculo das costas, cada parte que não poderia ver sem ajuda dos dois espelhos. Suspirou um alívio de contentamento e jogou o espelho de mão sobre a toalha molhada em cima da cama. E como fazia frio! Ele podia sentir o frio por ignorar suas roupas. Pensando em deixar, enfim, o seu próprio reflexo em paz, se olhou como quem olha o Davi de Michelangelo, apertou sua mão contra o coração e em seguida apagou a luz. Ele deixou a janela aberta, a toalha molhada no pé da cama junto ao espelho de mão e deixou que seu corpo caísse sobre os lençóis desarrumados da cama. Pensou que poderia ser o homem mais feliz do mundo e não tardou em desmaiar num profundo sono.

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