segunda-feira, 10 de maio de 2010

sem importância

Mais um sem importância...


Eu só precisava de um atalho. Não para chegar mais rápido em casa, mas para me demorar ainda mais no caminho antes que fosse tarde demais. Eu não queria entrar em casa e fechar minha noite, sem ter passado por um instante que fosse de susto e surpresa com qualquer coisa que me fizesse perder o sono. Por fim, a rua era a mesma. O caminho até minha casa era o mesmo. As pessoas e os carros na rua eram os mesmos... Os mesmos? Já terminando meu percurso, frustrado pela falta de acontecimentos no caminho, me intrometi de modo invasivo entre duas mulheres. Uma estava do outro lado da rua, sentada, sem nada pra fazer. A outra, no mesmo lado que eu, varria a frente de seu trailer de cachorro quente. Minha invasão entre elas não seria nada para mim se não fosse o olhar estranho com que a mulher da vassoura me presenteou. Ela deixou um longo suspiro para que eu a visse e foi mais invasiva que eu com seu olhar estranho. Não deixou que eu passasse antes de ouvir seu comentário: “Cazuza não morreu”. Por um instante tive vontade de parar, tive vontade de buscar minha coragem perdida para devolver seu olhar, quem sabe eu não veria em seus olhos o Cazuza que não havia morrido... Quem sabe eu não encontraria um espelho qualquer naquele olhar estranho que me deixasse ver o que via aquela mulher, que ninguém era sem aquela vassoura; e, para mim, sem aquele comentário mau dito... Por um instante eu queria parar e encontrar nela os vestígios que inspiraram aquele comentário, mas meus pés não estavam dispostos a parar. Agora faltava pouco para alcançar o portão de meu prédio. Faltavam alguns passos e eu me perturbaria ainda mais; quando meus passos fossem silenciados, seria a voz da mulher da vassoura que eu ouviria. Mas novos espíritos brincalhões surgiram. Lembrei-me de quando, há alguns meses, eu estava num prédio da prefeitura numa longa espera para ser atendido, apenas na intenção de renovar uma bolsa de estudos, já irritado com a hora e a falta de gente para ver. Lembrei-me de quando, então, entrou um rapaz e sentou-se ao meu lado. Eu não queria deixar o silencio ditar as regras, mas foi ele quem brindou-nos com a iniciativa.

_ Você estuda na “Filosofia”, não é?

_ Estudo. – foi suficiente para deixar claro ao silêncio que naquele dia não era ele quem falava, ainda assim deixamos que o silêncio se divertisse um pouco mais. E ali ficamos. Foi quando peguei carona na iniciativa dele. – Você já me viu por lá?

_ Não. – mesmo não querendo deixar para o silêncio a chance do momento, o rapaz falava muito pouco. Eu mesmo não entendia tanta objetividade.

_ Os estudantes da “Faculdade de Filosofia” são tão parecidos assim? Padronizados? – perguntei.

_ Você tem o estilo e o jeito Cazuza. Os estudantes da “Filosofia” têm esse estilo.

O jeito Cazuza. E agora, o Cazuza que não morreu. O pequeno caminho até o portão do meu prédio se alargou. A rua já parecia vazia, um vazio que só as vozes do rapaz e da mulher da vassoura podiam preencher. Cazuza! Lembrei-me inevitavelmente do Cazuza. De seu jeito, sua arte, sua aparência, seu estilo Cazuza de ser. Mas ele em si pouco interessava. Era o jeito de viver que ele imprimiu que interessava. O que interessava era... O que eu tinha com isso? Por que a mulher que não era ninguém sem aquela vassoura viu em mim a possibilidade da não-morte do Cazuza? E que estilo era esse que um rapaz profeta do passado teria visto em comum nos estudantes de uma mesma faculdade a ponto de me reconhecer, mesmo nunca tendo me visto? Já no portão, eu não sabia mais se falava do Cazuza em primeira ou terceira pessoa. Para tanto, era o Cazuza que viam em mim que andava naquela noite. Eu já poderia dizer “eu, Cazuza”. Mas ele ficaria morto e na memória e discos espalhados por esse Brasil misto. Era outro o Cazuza que andava tentando chegar ao portão, eu. Já usava a primeira pessoa para falar dele que viam em mim, que não era ele de fato. Minha briga com a primeira e terceira pessoa do singular só evidenciava as tantas vezes que vi Elis Regina numa amiga, Clarice Lispector em outra pessoa ou mesmo Tim Maia num magrelo da esquina.
Enfim, o portão. Era hora de começar momentos destinados as muitas pessoas do singular e pessoas singulares. Hora de reconhecer que o acaso me presenteou com um belo atalho.

Um comentário:

Maísa Reindeer disse...

É! Realmente um ótimo atalho! E o Cazuza que morreu, é um Cazuza que as pessoas acreditam que você conseguiu ressuscitar. Um Cazuza diferente, que sua alma transparece e que deixa rastros onde quer que vá! Sem saber da distância a se percorrer....ele segue, segue e um dia ele entende que ele apenas estava dando voltas pra chegar até você que é "ele".